Por Daniel Toledo
Que personagens e narrativas estão contidas nos monumentos e nas imagens que tradicionalmente ocupam as cidades? E que outras personagens e narrativas costumam ficar de fora dessa iconografia urbana oficial? De que maneiras a arte e a produção cultural podem contribuir para alterar os regimes de visibilidade nas cidades, ampliando certo imaginário coletivo sobre as noções de centro e periferia?
Em julho de 2017, o Circuito Urbano de Arte (Cura) veio ao mundo com os olhos voltados às amplas fachadas sem janelas que marcam a arquitetura da região central de Belo Horizonte. Idealizada por Janaína Macruz (1982), Juliana Flores (1985) e Priscila Amoni (1985), a iniciativa vem se ampliando a cada ano e pouco a pouco habituando a população da capital mineira à convivência com imensos murais concebidos e realizados, em sua maioria, por jovens artistas de características e inspirações tão diversas quanto a própria paisagem social da cidade e do país.
Naquela primeira edição, quatro trabalhos foram apresentados ao público. Em dezembro do mesmo ano, foram inaugurados outros dois murais, dentro das comemorações dos 120 anos de Belo Horizonte. Desde então, esses e outros trabalhos podem ser vistos de um mesmo ponto da cidade: a rua Sapucaí. Situada logo atrás da estação central, a via se converteu, nos últimos anos, em um importante espaço de sociabilidade e diversidade – e também em um mirante de arte urbana capaz de impressionar moradores e visitantes. Ao longo dos mini documentários "
Cura 2020" e "
Cura 2021", somos convidados a acompanhar a expansão do circuito pelo centro da cidade até alcançar – e ressignificar – outro importante marco urbano da capital mineira: a Praça Raul Soares.
Cura 2020
Conduzido por uma trilha sonora marcante, composta pelos artistas Daiara Tukano e Jaider Esbell, o minidocumentário "
Cura 2020" nos oferece um generoso passeio aéreo pela região central de Belo Horizonte, ao longo do qual podemos reconhecer a vivacidade de algumas fachadas transformadas pela ação de diferentes artistas. Em meio a esse passeio, somos atravessados por depoimentos das idealizadoras do circuito, de curadoras convidadas e de artistas participantes, assim como por registros que destacam os bastidores do evento e os desafiadores processos de produção de quatro murais que desde então integram o imaginário de qcuem visita ou frequenta o centro da capital mineira.
Na fachada de um grande edifício, uma cena de afeto e cuidado entre dois homens negros. Em plena avenida Amazonas, uma representação indígena da mãe natureza, trazendo um menino rio, como filho, entre os próprios braços. A alguns quarteirões dali, na avenida Afonso Pena, outra mãe, negra, segurando duas crianças em uma imagem bastante familiar a muitos moradores do centro e das periferias da capital. Logo mais, outra mulher negra, envolvida por múltiplas cores e sentidos, dá mais vida e força à paisagem da cidade. Amparado em registros de momento histórico no qual muita gente se mantinha dentro de casa, o minidocumentário "Cura 2020" carrega as memórias de uma paisagem que se transformou a partir de obras permanentes dos artistas Daiara Tukano, Robinho Santana e Diego Mouro, de São Paulo, e Lídia Viber, de Minas Gerais.
O vídeo inclui ainda imagens e depoimentos do artista roraimense Jaider Esbell, falecido em 2022, que participou da mesma edição do Cura com uma instalação temporária – uma grande serpente inflável – montada nos arcos do Viaduto de Santa Teresa. E também as memórias de cinco imensas bandeiras que durante alguns meses permaneceram penduradas nas janelas de um edifício da região central, nos chamando, tal qual o próprio evento, a pensar sobre representatividade, futuro e possíveis caminhos de transformação.
Cura 2021
Importante ponto de referência, articulação e sociabilidade da cidade de Belo Horizonte, a Praça Raul Soares e seus arredores se apresentam logo de início como os principais cenários do minidocumentário "
Cura 2021". Ainda nas cenas de abertura, somos convocados a reparar na paisagem da região e, mais especialmente, no piso da praça. Apesar de construído à moda das calçadas portuguesas, naquele piso se inscrevem elementos geométricos que remetem à cultura marajoara – conforme nos lembra a cozinheira e realizadora cultural Tainá Marajoara, em dos primeiros depoimentos do vídeo.
Ouvimos, então, relatos dos artistas Sadith Silvano e Ronin Koshi, do grupo étnico da amazônia peruana Shipibo-Conibo. Em vez de ocuparem a fachada de um edifício, os dois usaram como tela o próprio asfalto cinza em torno da praça, convertido em uma grande serpente cheia de cores, grafismos e significados. Também têm espaço no filme – e na paisagem da cidade – os artistas Txana Bane e Kasia Hare Karaja Hunikuin, integrantes do coletivo Makhu. Pertencentes à etnia Huni Kuin, eles refletem sobre a presença indígena nas cidades e apresentam o trabalho em que ocuparam uma grande fachada da região com grafismos tradicionais e diferentes animais da fauna brasileira.
Em seguida, trazendo a vibração do grafite e das periferias urbanas, o artista mineiro Ed-Mun contextualiza a própria criação, em que explora a tridimensionalidade da imagem e presta uma homenagem à importância das letras na tradição do grafite. A artista Mag Magrela, de São Paulo, indica alguns caminhos de leitura sobre o mural de sua autoria, em que duas mulheres vislumbram o futuro. Por fim, também podemos relembrar a escultura criada pelo grupo Giramundo e temporariamente instalada na fonte da Praça Raul Soares, além de dois encontros públicos realizados na própria praça, durante a abertura e o encerramento do evento de 2021.
Centro, periferia e visibilidade
Ao apresentar algumas das pessoas, das motivações e dos processos envolvidos na concepção e na produção dos trabalhos, os mini documentários "Cura 2020" e "Cura 2021" nos convidam a perceber de modo mais ampliado os murais que integram as duas edições mais recentes do evento. E para além de tratar dos trabalhos permanentes, que seguem em exposição nas ruas e avenidas da capital mineira, os vídeos também nos permitem acessar uma série de intervenções e ações temporárias que têm em comum o interesse por uma ocupação concreta e simbólica de espaços e paisagens urbanas.
Os documentários nos lembram ainda que uma grande potência do Cura reside em trazer ao campo da visibilidade urbana – no caso, ao centro da cidade – um amplo conjunto de imagens, personagens e narrativas historicamente relegadas a espaços periféricos, marginais ou subalternos. Não por acaso, é bom lembrar, o projeto surge em meio a uma série de movimentos locais voltados a transformar diferentes espaços de uma antiga capital planejada em lugares vibrantes, capazes de reconhecer traços da cultura local e se inscrever, com afeto e subjetividade, na rotina e nas memórias de moradores e frequentadores da cidade.
Assista o vídeo