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Literatura e música em cena

Foto: Luiza Palhares

Por Daniel Toledo e Marina Fares


Em 1998, o espaço cultural Galpão Cine Horto foi criado pelo Grupo Galpão, com o objetivo de pesquisar, fomentar, formar e estimular a criação de artes cênicas em Minas Gerais. Desde então, está instalado em um antigo cinema construído na década de 1950, situado no bairro Horto, na região Leste de Belo Horizonte. Já há algumas décadas, sob a direção e coordenação geral do ator e gestor cultural Chico Pelúcio (1959), o local promove e recebe uma intensa programação, que inclui espetáculos, exibições de filmes, oficinas de curta duração e cursos permanentes, além de abrigar o Centro de Pesquisa e Memória do Teatro – ampliando em muito o impacto inicial do grupo sobre a cena cultural da cidade, do estado e do país. 


Durante o período pandêmico, diversas ações foram realizadas por inúmeros agentes culturais com o objetivo de dar continuidade aos projetos impactados diretamente pela chegada do coronavírus. Nesse sentido, a equipe do Galpão Cine Horto não mediu esforços para seguir divulgando e valorizando a cultura e a arte brasileiras. Entre as múltiplas ações realizadas pelo espaço cultural, destaca-se a produção de algumas séries de vídeos que se relacionam não só ao teatro, mas também a outros campos da arte, como a música, a literatura e a cultura popular. 


Entre os vídeos, há alguns que foram produzidos de forma caseira: tendo como cenários as residências dos próprios atores e atrizes, utilizando câmera parada e poucos cortes, assim como recursos de iluminação e materiais cênicos bastante simples – que não por acaso podem nos fazer lembrar do próprio teatro. Certas produções recorreram a recursos tecnológicos disponíveis em telefones celulares, outras foram criadas em diálogo com o desenho, o teatro de formas animadas ou ainda a partir de narrações, convocando nossa percepção a se concentrar ainda mais na voz e na interpretação de cada convidado. 


Os vídeos produzidos pelo Galpão Cine Horto foram agrupados em quatro séries: Lendas Brasileiras, Verso e Voz, Poesias Infantis e, por fim, Cine Horto Som e Fúria. Vários atores, atrizes e performers, incluindo integrantes do próprio Grupo Galpão, foram convidados a atuar na apresentação de uma lenda ou na declamação de um poema, trazendo múltiplas vozes, sotaques e gerações para a interpretação de um amplo repertório. Além disso, a série Cine Horto Som e Fúria, dedicada especialmente à música,  reúne artistas e coletivos selecionados por meio de um edital público. 


Múltiplos caminhos de leitura podem ser apontados para a fruição desse amplo acervo audiovisual, que chama atenção pela diversidade de temas e de linguagens abordadas, assim como pela adoção de estéticas que, em grande parte dos casos, valorizam a economia de recursos e a simplicidade.  


Lendas Brasileiras


Inúmeras são as lendas brasileiras narradas nas diferentes regiões do Brasil – e suas origens estão em grande parte relacionadas às mitologias das culturas de povos indígenas, europeus e africanos. No conjunto de vídeos produzidos pela equipe do projeto Conexão Galpão, que há mais de uma década se dedica a aproximar o teatro do público escolar, essas lendas são narradas juntamente a imagens, desenhos, experimentos de animação, objetos ilustrativos, emojis e uma série de outros elementos relacionados às linguagens da arte e à cultura contemporânea. 


Dentre as narrativas selecionadas, figura, por exemplo, a lenda "Boto": conhecido como o protetor das mulheres, um animal que mora nas águas do Rio Amazonas e, à noite, se transforma em ser humano para se encontrar com sua amada. A figura da mulher também está presente na lenda "Matinta Pereira". Sem a certeza de que é realmente uma mulher ou um pássaro, escutamos que a Matinta pode entrar nas residências espalhando doenças aos moradores –  para que nada de mal aconteça, é preciso agradar a figura com presentes de distintas naturezas. 


Mal é uma palavra presente nas lendas "Cabra Cabriola", "Negrinho do Pastoreio" e "Choro dos Ipês". Na primeira, a Cabra Cabriola se disfarça como uma mãe, entra em na casa dessa mulher e devora seus filhos. Já em "Negrinho do Pastoreio", um menino negro falece depois de ser muito maltratado por seu patrão fazendeiro. Antes de falecer, no entanto, o menino pede ajuda à Nossa Senhora e retorna à vida. Desde então, quando se quer achar objetos perdidos, basta pedir ao Negrinho Pastoreio. Na lenda "Choro dos Ipês", a maldade está na figura de um caçador que gosta de cortar árvores, até que uma fada aparece e o transforma em um ipê. Segundo essa lenda, o lamento dos ipês representa o choro do caçador, fazendo-nos pensar que cada árvore pode, um dia, ter experimentado a vida humana. 


Em "Galinha D’Angola" e "Lenda do Algodão", temos acesso a narrativas que envolvem mistérios do universo. No país de Angola, em África, um grupo de habitantes implora por chuva, quando avistam uma nuvem carregada de água que logo é afastada por um elefante. Então, uma galinha sai correndo atrás da nuvem clamando por chuva e é atendida, sendo presenteada com pingos, tornando-se a Galinha D’Angola. Por último, a "Lenda do Algodão" relata um encontro entre o semideus indígena Sacaiu e o gigante Rairu. Interessado em ampliar suas plantações, Sacaiu segue o conselho do gigante e desce ao fundo da terra usando uma longa trança de algodão. Em seu retorno, entretanto, outras pessoas sobem pela corda – até que ela se arrebenta e algumas delas caem de volta no buraco. 


Verso e Voz


A poesia é uma arte fundada na composição de versos, expressando em diferentes ritmos e métricas uma ampla gama de sentimentos, experiências e visões de mundo. A cada poema, palavras se entrelaçam de múltiplas maneiras, proporcionando aos leitores não apenas o sentir, mas também o observar, o indagar e o refletir. Mas como colocar a poesia em diálogo com o audiovisual?


É nessa direção que a série Verso e Voz convida atores e atrizes para declamarem poesias e poemas de criadoras e criadores mineiros relacionados a variadas estéticas e gerações. Fazendo uso de imagens gravadas em cenários caseiros, os vídeos dessa série seguem uma mesma estrutura: primeiro, são apresentados elementos da trajetória biográfica e literária de autores e autoras; em seguida, somos convidados a acompanhar leituras de quatro ou cinco poemas ou poesias de mesma autoria. 


A poetisa e arte educadora Adriane Garcia, por exemplo, é apresentada pela atriz e educadora Gláucia Vandeveld, integrante da equipe pedagógica do Galpão Cine Horto. Após esse momento, à frente de um fundo escuro, a atriz mineira Rita Clemente interpreta trechos de um livro então inédito de Adriane Garcia: “A Bandeja de Salomé”. A passagem selecionada trata de situações familiares míticas e complexas, envolvendo a brutalidade de um pai com suas filhas – e é interpretada de maneira a expor tanto a perplexidade quanto a revolta da narradora. Ainda nesse vídeo, outras leituras são realizadas, a partir das quais conhecemos os poemas “A cor dos olhos de Lia” e “A metáfora de Agar”, que oferecem reflexões sobre a maternidade e a condição feminina. Além de destacar obras de Adriane Garcia, a mesma série dá vida a poemas, poesias e crônicas das autoras Adélia Prado, Ana C. Moura, Ana Caetano, Ana Martins Marques, Líria Porto e Nívea Sabino, além da portuguesa Adília Lopes


Com relação às obras de autores mineiros, são compartilhados versos de Abgar Renault, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade. O vídeo dedicado a esse último, apresentado pela atriz e educadora Juliana Martins e interpretado pelo ator Cláudio Mendes, destaca logo de início as raízes mineiras do poeta e escritor, ali vinculadas ao poema “Infância”. Sob a luz de uma vela, o ator compartilha memórias de uma típica família do século passado, sob a ótica de uma criança bastante observadora. No poema “A morte de sobrecasaca”, por outro lado, imagens em preto e branco traduzem um clima de nostalgia e esquecimento. Mais adiante, o diálogo direto com a câmera dá vez à certa teatralidade – e dramaticidade – durante as leituras de "Confronto" e “Poema Patético”. 


Poesias Infantis


Buscando alcançar públicos de todas as idades com seus vídeos literários, a equipe do Galpão Cine Horto produziu ainda uma série especialmente dedicada a crianças e famílias. Relações familiares, sentimentos, natureza e corpo humano, dentre outros temas, são alguns dos tópicos presentes nos vídeos desse conjunto, que toma como potentes pontos de partida poesias e poemas de autores brasileiros e estrangeiros consagrados: Cora Coralina, Jacques Prévert, José Paulo Paes, Mário Quintana, Pablo Neruda e Paulo Leminski. 


Dessa vez, as poesias são adaptadas e interpretadas junto a recursos pedagógicos como ilustrações e o próprio ato de desenhar, trazendo elementos que costumam facilitar a compreensão e aguçar o interesse de pequenos e pequenas espectadoras. Em alguns casos, desenhos feitos com lápis de cor ou fios de linha surgem à medida que os versos são declamados, gerando pistas e rastros das palavras presentes na literatura. 


Em "Fazer o retrato do pássaro", nome do poema do francês Jacques Prévert, traços feitos com lápis de cor fazem surgir,  ao mesmo tempo no papel e na tela, o desenho de uma gaiola feita para abrigar um pássaro. Ao longo do poema, também somos ensinados a desfazer o desenho, apagando, pouco a pouco, as grades da gaiola. E, ao final, muito além disso, pinceladas de tinta transformam a gaiola em uma floresta e a narração nos convoca a esperar, então, pelo canto do pássaro livre.


Cine Horto Som e Fúria


Também idealizado pela  equipe do Galpão Cine Horto, o projeto Cine Horto Som e Fúria teve início no ano de 2019, com o objetivo de divulgar a música independente mineira, sobretudo de artistas e grupos jovens da região metropolitana de Belo Horizonte. Realizado no Teatro Wanda Fernandes, principal espaço da sede da instituição, a primeira edição do Som e Fúria ofereceu ao público da cidade uma série de espetáculos musicais potencializados pelos recursos de luz e de som presentes em um teatro mais acostumado a receber espetáculos de artes cênicas. 


Entre 2020 e 2022, com a chegada da pandemia, o mesmo projeto foi adaptado para o formato online, alcançando, a partir de então, um público ainda mais amplo. Cada uma das apresentações tem em média 40 minutos e, a partir do momento em que é veiculada, passa a integrar de modo permanente o acervo do canal de Youtube do centro cultural. 


Na edição de 2022, foram selecionadas seis atrações musicais relacionadas a diferentes ritmos, visando alcançar os mais variados públicos. O samba de raiz é representado pelos oito integrantes do grupo Simplicidade do Samba, que celebra 15 anos de existência em 2023. Os ritmos africanos e afro-brasileiros, misturados ao rap, também estão contemplados na série e são expressos pela artista Tamara Franklin, natural da cidade de Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte. O rap se faz presente ainda com uma apresentação de Mac Júlia, com letras que tratam, sobretudo, do universo da mulher, abrangendo debates que vão desde a luta feminista até as desilusões amorosas. 


 


A mistura de ritmos, que vai do candomblé ao rock, do jazz ao hip hop, é encontrada na música instrumental do artista Acauã Ranne. Já a cantora Nádia Campos traz sua voz afinada em canções influenciadas pela cultura da América Latina. Finalizando, entre os artistas selecionados em 2022, destaca-se ainda o grupo Quarteto Assanhado, que apresentou no palco do Galpão Cine Horto o lançamento do seu segundo disco, completamente dedicado ao choro.


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