Por Daniel Toledo
Uma carroça, um baú de madeira, um berrante, uma sanfona, algumas roupas no varal. Essas são algumas das imagens apresentadas pelo espetáculo "Partidas", obra mais recente do grupo mineiro Teatro da Pedra, que tem sede na cidade de São João Del Rey. Fundado em 2015, o grupo é dirigido pelo ator e diretor Juliano Pereira (1970). Além de produzir espetáculos, já há alguns anos o Teatro da Pedra desenvolve um trabalho pedagógico voltado a crianças, jovens e adultos da região. E assim teve origem o espetáculo "Partidas".
Mais do que um espetáculo de artes cênicas, o projeto "Partidas" é fruto de uma investigação sobre experiências de vida concretas, acessadas a partir de oficinas de teatro realizadas com mulheres que vivem no interior de Minas Gerais. Da sede em São João Del Rey, o grupo se deslocou até a pequena cidade mineira de Coronel Xavier Chaves, onde moram cerca de 3 mil pessoas, para colher histórias relacionadas a um fenômeno social que há muito integra a história do país: o êxodo rural.
Apostando em uma combinação entre elementos narrativos, dramáticos e musicais, a obra nos convida a acompanhar as trajetórias de quatro personagens que migram desde o interior até a cidade grande, rodeados por seus familiares, vizinhos e outras pessoas que atravessam seus caminhos.
Além de alternarem-se entre essas diferentes figuras, as atrizes – e o ator – do elenco também interpretam ao vivo uma série de canções de importantes nomes da música popular brasileira, tais quais Caetano Veloso, Geraldo Vandré e Paulinho da Viola, assim como recorrem a instrumentos musicais, gerando cenas que vez ou outra nos remetem à tradição do Grupo Galpão.
A partir dessas trajetórias, por vezes apresentadas de modo fragmentado e costuradas pela dramaturgia, transitamos entre o campo e a cidade, tendo a nostalgia, a saudade e a solidão como fios condutores de uma obra que nem por isso deixa de lado o humor e a leveza.
"Partidas"
O início do espetáculo talvez nos ponha em dúvida sobre a época em que se passaria a história: estaríamos falando do passado ou de algo que acontece no presente? Logo entendemos, no entanto, que o que se estabelece é um jogo livre com o tempo: a cada cena transitamos entre passado e presente, percorrendo sobretudo espaços onde muitas imagens permanecem, sem necessariamente ceder ao acelerado ritmo da modernidade. Só assim conseguimos apreender o tempo específico do berrante que anuncia a primeira narrativa, assim como as diversas imagens que se revelam a seguir.
Conduzidos por palavras que rapidamente criam imagens, assim como pelo uso criativo dos elementos de cena, podemos percorrer uma longa estrada de poeira que leva até a escola e até mesmo testemunhar uma acirrada disputa por um raro aparelho de rádio que acaba de chegar ao comércio. Acompanhamos, ao longo da obra, sucessivas partidas e algumas chegadas, assim como reencontros e dolorosas despedidas. Guiados pela palavra e a imaginação, atravessamos espaços como estações, igrejas e hospitais, assim como interiores, pacatas ruas de casas e movimentados centros urbanos.
Todos esses espaços, entretanto, são vistos sob a perspectiva de quem vem do interior e interpretados sob uma ótica crítica que se revela a partir de falas aparentemente ingênuas e por vezes bem humoradas. Há quem trabalhe como empregada doméstica, enfermeira e vendedora ambulante, há quem custe a se encontrar na cidade grande e quem se encontre ao ponto de retornar ao campo – e à própria gente – somente quando já é tarde demais.
Sonho e realidade
"Partidas" é um espetáculo que nos toca pela emoção e pela memória: uma obra que trata do êxodo rural em suas dimensões íntimas e subjetivas, ressaltando as vivências de mulheres que poderiam ser nossas amigas, vizinhas, mães ou avós. E ao contrário do que acontecia nos tempos de Shakespeare, aqui são as atrizes que predominam na cena e interpretam, inclusive, alguns dos personagens masculinos presentes na obra.
Frequentemente reféns dos próprios pais, dos pares que encontram pela vida, das ocupações tradicionalmente reservadas às mulheres, as personagens centrais do espetáculo circulam, como todos nós, entre a matéria dos sonhos e a concretude da realidade. Em meio à dureza da vida, elas nos lembram que há sempre espaço para a poesia, seja a partir da música ou do sonho, de receitas trocadas ou curiosas superstições passadas de geração a geração.
Na esteira de filmes brasileiros como "Lavoura Arcaica" (2001) ou, mais recentemente, do italiano "Lazaro Felice" (2018), o espetáculo "Partidas" se volta, a própria maneira, a modos de vida que resistem – ou cedem – aos tempos, reconhecendo no campo e na cidade uma série de práticas e valores sociais que a arte pode nos ajudar a enxergar criticamente.