Por Daniel Toledo
Como promover eventos culturais que aconteçam fora dos grandes circuitos e longe das grandes cidades? Como colocar em diálogo o turismo cultural, o patrimônio natural e as memórias cotidianas de lugares e comunidades? Como provocar conversas entre artistas, paisagens e histórias enraizadas em cada local? E de que modos as imagens, sejam vindas de antigos arquivos ou produzidas por meios digitais, podem nos ajudar nessa expedição?
Atravessado por essas e outras perguntas, o documentário "Cerrado Mapping Festival 2020" nos convida a uma viagem até a Vila de Santa Bárbara, pequeno povoado nos arredores do município de Augusto de Lima, na região central de Minas Gerais. Idealizado pelo artista Ricardo Cançado (1981), também conhecido como VJ Eletroiman, o Cerrado Mapping Festival realizou sua primeira edição em agosto de 2020, levando às bordas da Serra do Espinhaço nomes consolidados e figuras emergentes no cenário nacional das projeções mapeadas.
Como registro crítico e reflexivo sobre a edição de estreia do evento, o documentário chama atenção à potência expressiva do videomapping como uma linguagem capaz de reconfigurar paisagens e percepções – nesse caso convertendo em tela de projeção a fachada de uma antiga fábrica têxtil situada na região. A partir de diferentes estéticas e estratégias, artistas convidados e selecionados criaram e compartilharam, em pleno diálogo com o cerrado brasileiro, um rico universo de sentidos e narrativas audiovisuais.
Cerrado Mapping Festival 2020
Em clima de road movie, ou em portugês um "filme de estrada", o documentário tem início dentro de alguns carros que se deslocam em direção à Vila de Santa Bárbara. Através das janelas, temos acesso a uma diversidade de paisagens do cerrado brasileiro, assim como aos olhos entusiasmos daqueles que de fato percorrem a viagem. Se, inicialmente, são paisagens reais que ocupam essas janelas, logo elas se convertem em cenários digitais – sem, contudo, interromper o espírito da viagem.
Em um dos primeiros depoimentos, o diretor do festival, Ricardo Cançado, associa a origem do festival a uma série de experiências anteriores na mesma região, quando a partir de residências artísticas teve a oportunidade de conhecer a paisagem e a comunidade que habitam os arredores da vila. "Respeito ao patrimônio, resgate da memória e equilíbrio com a natureza" são então apresentados como valores importantes para a concepção do evento, ao longo do qual artistas convidados e selecionados são convidados a dialogar tanto com a arquitetura local quanto com elementos naturais, tais quais pedras, rios e cachoeiras.
Logo ouvimos também as palavras do historiador Guilherme Paculdino, que destaca alguns capítulos da história da Vila de Santa Bárbara: anteriormente ocupada pela exploração de diamantes, a região se converteu, na última década do século XIX, em um pólo têxtil de grande importância local. Construída em 1889, essa antiga fábrica, juntamente às casas operárias ao seu redor, servem agora como cenário a boa parte das cenas do filme e das atividades do festival. A partir do videomapping, a fachada da mesma fábrica se transforma em um espelho que reflete diferentes aspectos do amplo imaginário que ronda o cerrado brasileiro.
Processos compartilhados
Além de exibir os trabalhos elaborados por cada artista, o documentário destaca outra frente do evento: uma série de rodas de conversa nas quais convidados e selecionados foram convocados a apresentar suas metodologias de criação, assim como a estabelecer conversas com os espectadores do festival. Mais do que uma mostra de trabalhos, o Cerrado Mapping Festival se apresenta como um espaço de formação e troca de conhecimento em torno do videomapping e suas múltiplas possibilidades.
Intercalando trechos de projeções e depoimentos de artistas participantes, somos introduzidos em um universo que inclui poemas de Cora Coralina e vivências do Centro-Oeste brasileiro, que resgata da literatura de Guimarães Rosa a figura de Diadorim, que estabelece diálogos com o grafite e a animação, que celebra a força das águas e das ervas medicinais.
Pouco a pouco, no decorrer do vídeo, outro aspecto da mesma edição de estreia nos chama atenção e é destacado por suas próprias participantes: trata-se de um evento cuja maioria de artistas selecionadas é formada por mulheres. Representando diferentes gerações, distintas experiências anteriores com a prática do videomapping e ainda diferentes regiões do país, essas artistas compartilham a percepção do festival como um espaço de cooperação e renovação de um cenário tradicionalmente masculino.
Em diálogo com a comunidade
Mais adiante, o documentário destaca uma série de atividades desenvolvidas pelo festival como forma de se aproximar da comunidade local, incluindo exposições de acervos visuais locais, performances circenses e práticas formativas em arte, tecnologia e imagem. Entre essas iniciativas, podemos conhecer a instalação "Túnel da Memória", uma exposição de fotografias e breves documentários que, sob as perspectivas de moradores e visitantes, retratam diferentes momentos históricos da Vila de Santa Bárbara e seus arredores.
Reiterando o interesse do Cerrado Mapping Festival em atrair públicos de todas as idades, também ganha espaço no documentário a performance de um palhaço chamado Zé das Quantas, que traz narrativas do folclore local em diálogo com formas animadas de grande escala, projetadas sobre a antiga fábrica de tecidos. E em outro momento podemos testemunhar uma discussão em torno das noções de cerrado e de sertão.
Também integram o material algumas visitas de artistas participantes a uma série de paisagens da região, incluindo banhos de cachoeira e amplos quintais dedicados ao cultivo e ao estudo de ervas medicinais. E gradualmente, ao longo do filme, somos levados a reconhecer a riqueza e a complexidade do cerrado, assim como os múltiplos caminhos para lhes proporcionar a devida visibilidade