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A noite dos edifícios vivos

Por Daniel Toledo


A origem da iluminação pública em território brasileiro é comumente associada às primeiras décadas do século 19, quando algumas prefeituras assumiram a responsabilidade de acender lampiões instalados em pontos estratégicos das cidades. Óleo de baleia, de peixe e de mamona foram apenas algumas das substâncias utilizadas para alimentar esses lampiões, antes que o gás e, mais tarde, a luz elétrica chegassem aos centros urbanos do país.


O certo é que algum caminho foi percorrido até que a iluminação pública se tornasse, como acontece hoje, uma realidade consolidada para muitos de nós, sobretudo quando consideramos as cidades. É somente a partir desse recurso, afinal, que a vida noturna se faz possível nos centros urbanos, permitindo a circulação de pedestres e a ocupação de vias públicas mesmo depois que o sol se põe.


Realizada na região central da capital mineira em setembro de 2021, a primeira edição da Festa da Luz reuniu artistas vindos de diferentes regiões do país para um amplo experimento em torno das possibilidades da iluminação urbana. Incluindo oficinas, instalações, projetos de iluminação e projeções temporárias em fachadas de edifícios, o evento estimulou a ocupação do centro da cidade ao longo de uma noite repleta de imagens e sonoridades. 


A partir de uma reunião entre a Associação Cultural Casinha, a Híbrido Comunicação e Cultura e a Pública Agência de Arte, a Festa da Luz nos convida a uma investigação múltipla e coletiva sobre a arquitetura e o imaginário da cidade. Dentre as projeções em edifícios, especificamente, figuram obras que exploram aspectos lúdicos, festivos, poéticos e também políticos da palavra, da imagem e do som. 


Alguns dos trabalhos apresentados no evento ficaram registrados em um conjunto de vídeos curtos que apresentam as criações dos diferentes autores, autoras e coletivos convidados a ocupar, com vida, imagens e sons, por alguns minutos, importantes fachadas da região central de Belo Horizonte.


"Cidade é risco"


Construído em 1929, o Viaduto Santa Tereza é um dos mais importantes marcos urbanísticos da capital mineira, ligando o centro da cidade aos bairros Floresta e Santa Tereza. Na margem do centro, de frente para a entrada do viaduto, situa-se desde 1941 um outro importante marco da cidade: trata-se do Conjunto Arquitetônico Sulacap/Sulamérica, que há décadas troca olhares com o viaduto e foi escolhido pela equipe da Festa da Luz como uma das edificações a ganhar vida na primeira edição do evento.


Entre os artistas convidados a criar sobre a fachada do conjunto, figura o Coletivo Coletores, cuja origem remonta à zona Leste da cidade de São Paulo. Formado pelos artistas e pesquisadores Toni Baptiste e Flávio Camargo, o coletivo traduz em palavras diretas e grafismos urbanos – como o pixo, em sua versão digital – o interesse sobre as periferias, os apagamentos históricos e o direito à cidade. 


"Estamos vivos", "Resista", "Periferia vive", "Ruas", Cidade é risco": depois de explorar diferentes escalas e ritmos de leitura, o coletivo assume o próprio edifício como elemento gráfico, estabelecendo um jogo rítmico em que a trilha sonora rege o movimento e a visibilidade de linhas, blocos e janelas. Nesse edifício-tela, vemos ainda o rosto de um homem negro, e mais adiante a imagem de onipresentes cercas urbanas, delegando ao público um amplo espectro de leituras e interpretações.


Também na fachada do Sulacap/Sulamérica, expôs seu trabalho a artista brasiliense Laura Campestrini, que de início converteu os prédios em um prolongamento do céu, como se, em pleno centro da cidade, o céu fosse capaz de tocar o chão. A artista experimenta também a transformação de janelas em olhos que parecem observar e vigiar a cidade, assim como em lábios que talvez riam daquilo que veem ou do que lhes escapa. 


Além de explorar formas e elementos do prédio, Laura Campestrini convida o público a experimentar visibilidades menos concretas para a matéria sólida que o constitui. Ao longo da projeção, vemos o prédio se converter em fumaça, assim como numa matéria líquida que curiosamente se sustenta sobre o cimento, deixando ainda na memória uma imagem marcante de um edifício iluminado por imensas velas ao seu redor. 


"A caminhada é longa"


A alguns quarteirões do viaduto, caminhando pela rua da Bahia até a praça Rui Barbosa, situa-se mais um prédio escolhido como tela para os participantes da Festa da Luz. Trata-se, agora, do Edifício Itatiaia, cuja monumentalidade é reforçada pelas duas praças que servem ao público como espaço privilegiado diante da imensa tela recém-criada. 


Planetas, estrelas e constelações dão o tom inicial à proposta da artista Bah, cujo trabalho por vezes ganha ares de curta-metragem, ao apresentar ao público um personagem digital que parece atravessar diferentes tempos e espaços. Além de explorar as colunas e linhas do prédio, assim como a própria imagem do edifício, nele projetada, a artista propõe um jogo explícito com a palavra itatiaia, e não por acaso convoca alguns corpos indígenas para habitar uma narrativa poética e aberta, construída por sons e imagens que vez ou outra nos remetem aos anos 1970.  


Carol Santana, por sua vez, inicia seu trabalho com ilustrações de traços bastantes simples, assim como um jogo cromático baseado em formas geométricas e também outras, que remetem a rostos, mãos e olhos humanos. Em dado momento, transforma o prédio em uma longa estrada onde brilhantes faróis por vezes cruzam nossos olhares. Nos deparamos ainda com linhas retas que se tornam flexíveis, traços orgânicos que parecem trepadeiras e até mesmo sucessivas assinaturas que se acumulam e se alternam sobre a fachada. No encerramento, por fim, surgem grafismos indígenas embalados por ritmos que podem nos remeter às culturas originárias do nosso continente.


Em sua proposta, o VJ Notívago também nos convida a investigar a arquitetura como desenho e volume – um volume em constante movimento. Peças que se encaixam, linhas que se desdobram, volumes aparentemente rígidos que se torcem diante dos nossos olhos. Depois de soarem os sinos, aqui também ouvimos chocalhos, flautas, vozes e coros, enquanto elementos circulares contrastam com o volume rígido do prédio. Ouvimos então uma locução sobre a solidificação do mundo e a densificação dos espaços de vida, em oposição à ideia de essência – entendida como algo fluido. 


Vivemos a chuva, voltamos ao espaço sideral, com suas órbitas, cometas e explosões. De repente estamos de volta ao prédio: um volume adensado que pulsa e vibra diante de nossos olhos e ouvidos. E os olhos são ainda convidados a enxergar, naquele mesmo edifício, outros prédios, outros tipos de construção e de elementos ornamentais – como se estivéssemos diante um prédio vivo, repleto de camadas, potências e possibilidades.  


Outras vibrações


Um conjunto de três edifícios comerciais situados na rua Aarão Reis, a poucas quadras das praças e logo abaixo do Viaduto Santa Tereza, foi escolhido como terceiro cenário da Festa da Luz. Testemunhas privilegiadas do tradicional Duelo de MC's, os edifícios cederam suas fachadas aos trabalhos de artistas como a pernambucana biarritzzz, a brasiliense Grazzi e a carioca Le Pantoja.


Com um inesperado áudio de whatsapp tem início o trabalho de biarritz, dentro do qual a trilha sonora assume um papel bastante singular. Dessa vez, além de estabelecerem diálogos com a arquitetura dos edifícios e principalmente com as pichações nele estampadas, as imagens criadas pela artista também dialogam, como num videoclipe exibido em praça pública, com duas canções da rapper pernambucana MC Negrita, escolhidas para embalar e inspirar a apresentação. 


O trabalho realizado pela VJ Grazzi, de Brasília, chama atenção por trazer boas doses de humor à programação. Assim como alguns de seus colegas, a artista explora linhas que seguem a arquitetura do prédio, ressaltando suas estruturas; propõe também jogos rítmicos a partir da iluminação das janelas, com diferentes cores e texturas. Na obra da brasiliense, entretanto, há um inusitado jacaré que vez ou outra cruza a cena, atravessando uma paisagem sonora vibrante e deixando uma crítica sutil ao contexto da vacinação em terras brasileiras.


Também nos convida a uma viagem a obra da artista Le Pantoja, que apresenta uma espécie de videopoema interessado em palavras como desejo, liberdade e saudade. Da imagem de um céu estrelado vamos a outras paisagens naturais: árvores, mar, gaivotas, vento e areia. De uma trilha orquestrada, vamos à percussão do axé e do Carnaval, vemos o prédio se incendiar e retomamos ao videopoema do início, com uma série de desejos endereçados ao corpo coletivo da cidade.


Retomada


Realizada num momento de retomada dos eventos culturais em Belo Horizonte, àquela altura ainda restritos a ambientes abertos, a Festa da Luz surgiu ainda como uma celebração da possibilidade de estarmos juntos e de ocuparmos, novamente, as ruas da cidade. Aos registros compartilhados pela equipe do evento, faltaria talvez justamente a inclusão da presença e das reações do público diante dos espetáculos de som e imagem propostos por cada artista.


Ao combinar elementos do cinema, das artes visuais, da poesia, da música e também da festa, o evento destaca a potência artística do videomapping em superfícies urbanas, conjugando-o ainda a ricos ambientes sonoros que deixam muito espaço aos sentidos e à imaginação do público. 


Para além de um registro fiel dos trabalhos, o conjunto de vídeos representa uma memória de um momento de retomada da cidade, quando a realização de eventos em espaços públicos já se apontava – e ainda se aponta – como o caminho mais curto para o retorno de uma vida cultural urbana mais coletiva e inspiradora.


Assista o vídeo



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