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A experiência pública do teatro

Foto: Divulgação
Por Daniel Toledo

Quantas histórias cabem ao longo de quatro décadas de existência de um grupo de teatro? E quantas vozes seriam necessárias para contar essas histórias? Como traduzir em poucas palavras experiências vividas com o corpo inteiro, e muitas vezes em contato com a cidade? Como fortalecer, a partir da palavra, a arte e a cultura como memórias coletivas?

Foi no centro de Belo Horizonte, em torno de uma mesa de bar, que algumas palavras trocadas entre jovens atores e atrizes da cidade deram origem ao Grupo Galpão, ainda em 1982. Inspirados pela participação em uma oficina e um espetáculo conduzidos por dois diretores estrangeiros que haviam passado pela cidade, Antônio Edson (1955), Eduardo Moreira (1961), Teuda Bara (1941) e Wanda Fernandes (1945-1994) criavam naquele momento a primeira entre as muitas memórias que dali em diante o grupo dividiria, dentro e fora dos palcos, com públicos de todo o país.

Como forma de ativar essas memórias durante o período pandêmico de isolamento social, desde meados de 2020 os integrantes do Galpão vêm produzindo e publicando duas séries de vídeos criados a partir de depoimentos e imagens de arquivo do grupo, além de outros conteúdos audiovisuais. Intituladas "Pausa pro café" e "Onde o Galpão estava?", ambas as séries apostam na potência da oralidade e da informalidade como modo de compartilhar tanto marcos de sua história, como a própria fundação do grupo e a aquisição de sua sede, quanto breves – e curiosos – relatos sobre apresentações realizadas ao longo de 40 anos de trabalho.

Pausa pro café

Trazendo uma descontraída conversa entre Eduardo Moreira e Teuda Bara, integrantes e fundadores do Galpão, um dos vídeos nos apresenta a atmosfera de entusiasmo que permeava o momento da criação do grupo. Os dois retornam ao ano de 1982 para relembrar uma montagem do espetáculo "A Alma Boa de Setsuan", apresentada no Teatro Francisco Nunes, em Belo Horizonte. Após duas oficinas e três meses de ensaio sob a batuta de dois diretores estrangeiros que visitavam o país, os artistas viram o projeto ser concluído e logo decidiram se agrupar para continuar trabalhando juntos.

Dentre muitos aprendizados daquela primeira experiência compartilhada, seguiram no repertório dos quatro artistas saberes e práticas relacionadas ao teatro de rua e ao teatro moderno. Em pouco tempo, contam Teuda e Eduardo, o grupo tinha uma mala de figurinos, três pernas de pau e a ideia para um primeiro trabalho. Com um vestido branco em punho, os dois relembram, com a ajuda de imagens de arquivo, as primeiras apresentações da peça "E a Noiva Não Quer Casar", que estrearia ainda naquele ano em plena Praça Sete de Setembro, no hipercentro da capital mineira.

Em outro vídeo da mesma série, Eduardo Moreira visita o ano de 1987, quando o grupo acumulava cinco anos de atuação e preparava uma turnê de seu quarto espetáculo, "A Comédia da Esposa Muda". Naquele contexto, explica o ator, o grupo ainda não tinha um espaço próprio, e costumava ensaiar em espaços emprestados. Foi nesse contexto que o grupo visitou pela primeira vez a sua atual sede, à época utilizado como depósito de móveis por uma grande empresa da cidade. Três anos depois, após uma turnê internacional, o grupo estudava a compra de um espaço de trabalho, uma grande coincidência os levou ao mesmo imóvel, que àquela altura estava à venda. Desde 1990, é nesse mesmo endereço que têm origem todos os trabalhos criados pelo Galpão.

Onde o Galpão estava?

A partir de 1998, a atuação do Grupo Galpão se estendeu também a um outro imóvel situado na mesma rua – dessa vez, um antigo cinema. Dentro do Galpão Cine Horto, funciona desde 2005 o Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT), responsável por armazenar, organizar e disponibilizar gratuitamente um amplo acervo composto por livros, revistas, vídeos e objetos, entre outros elementos. E dentro desse acervo, como não poderia deixar de ser, figuram documentos bibliográficos e audiovisuais do Grupo Galpão e do próprio centro cultural.

Nos vídeos da série "Onde o Galpão estava?", somos convidados a acessar uma parte bastante especial do acervo do grupo. Trata-se dos cadernos de memórias dos espetáculos, que reúnem anotações sobre os processos de criação das obras e, para além disso, sobre a circulação desses espetáculos em diferentes contextos e cidades brasileiras. Inaugurados  sempre que tem início um novo trabalho, esses cadernos acompanham todas as apresentações de cada espetáculo, oferecendo ao público -– e à própria equipe – a oportunidade de acessar a experiência teatral em suas dimensões mais concretas.

Gravados na própria sede do grupo, assim como em outros ambientes que nos levam à intimidade de seus atuais integrantes, os vídeos nos desafiam a pensar nos múltiplos desafios gerados pelo corajoso encontro entre o teatro e a rua. Seja a partir da lida com públicos desavisados e acidentes de trabalho, ou ao tratar de apresentações realizadas debaixo de chuva e outras, celebradas com aplausos de pé, as variadas narrativas dessa série de vídeos nos levam a espaços tão distintos quanto a sede do Grupontapé, em Uberlândia, a praça dos Correios, no Rio de Janeiro, e o Teatro Solís, em Montevidéu.

O teatro e a cidade

Em um dos vídeos da série "Pausa pro Café", a atriz Lydia del Picchia (1962) reflete sobre as profundas relações entre o trabalho do grupo e diferentes espaços públicos da cidade de Belo Horizonte. Conduzidos por seu depoimento, ilustrado por cenas curtas e fotografias de antigos espetáculos de rua do grupo, vemos algumas cenas de arquivo que remetem a outra Belo Horizonte, ao mesmo tempo em que afirmam o poder de atração do teatro em seu encontro com o meio urbano e a vida nas cidades.

Entre esses espaços, no entanto, Lydia destaca a potência da Praça do Papa, situada na região sul da cidade, como um "teatro grego natural" que desde 1992 passou a integrar importantes capítulos da trajetória do grupo. Foi naquele ano, conta ela, que estreou na mesma praça o espetáculo "Romeu e Julieta" – e o sucesso foi tamanho que dali em diante o espaço se converteu em palco para todas as estreias dos espetáculos de rua do Galpão.

O mesmo vídeo reúne ainda algumas cenas da remontagem de "Romeu e Julieta", apresentada na Praça do Papa em 2012 em celebração aos 20 anos da estreia, além de registros das primeiras apresentações de "Till, a saga de um herói torto" (2008) e "Os Gigantes da Montanha" (2013) sob as mesmas curvas da Serra do Curral. Aproveitando-se das palavras de uma carta enviada por um espectador do grupo, a atriz nos convida a perceber a beleza do teatro como um acontecimento público – e não somente como obra artística encerrada em si.

 

Assista o vídeo


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