Por Daniel Toledo
Situado na região Leste de Belo Horizonte, próximo à fronteira com o município de Sabará, o bairro Alto Vera Cruz tem uma história muito parecida com as de várias periferias de grandes cidades brasileiras. Essa história começa nos anos 1950, quando o território até então conhecido como Alto dos Minérios passa a receber seus primeiros moradores, vindos de cidades do interior de Minas Gerais em busca de trabalho na capital. Àquela altura, o bairro ainda não contava com escolas ou ruas asfaltadas, mas já se destacava pela resistência cultural de seus habitantes, a partir de manifestações tradicionais como o congado, a festa de caboclo e as quadrilhas.
Desde 1996, entretanto, o bairro abriga o Centro Cultural Alto Vera Cruz, que já há algumas décadas recebe oficinas comunitárias de hip hop, dança afro e capoeira angola, entre outras atividades capazes de atrair a juventude e também outros públicos da região. Hoje em dia, dentre os muitos artistas e coletivos revelados no bairro, destacam-se o Grupo Cultural Meninas de Sinhá, formado por senhoras moradoras do Alto Vera Cruz, e o cantor e compositor Flávio Renegado.
Pois são justamente alguns versos escritos e interpretados por Flávio Renegado que embalam o minidocumentário "Mamu – Morro Arte Mural", trazendo registros e reflexões sobre a primeira edição do evento, realizada em 2018. Com curadoria de Janaina Macruz (1982) e Juliana Flores (1985), da Pública Agência de Arte, a edição de estreia do projeto compreendeu a pintura das fachadas de 41 casas da comunidade, em um processo criativo marcado pela intensa participação de moradores e moradoras da região.
Mamu – Morro Arte Mural
Compilando depoimentos, imagens dos processos e também os resultados do projeto, o vídeo tem início com falas dos artistas Zeh Palito e Rimon Guimarães, que juntos formam o duo Cosmic Boys e foram convidados pela curadoria para conceber os desenhos e composições que logo mais se tornariam parte da paisagem local. Em seus depoimentos, ambos ressaltam não apenas aspectos relacionados à criação do mural, mas também os desafios de realizar o trabalho em meio a ruas estreitas, casas em permanente construção e um contexto até hoje marcado por limitações de acesso e serviços públicos.
Para além desses desafios concretos, entretanto, o mini documentário ressalta a participação dos moradores do Alto Vera Cruz como uma das grandes potências do projeto, que em vez de atuar sobre grandes muros e empenas, tem como suporte recorrente fachadas de casas construídas pelas próprias mãos de seus moradores. Como forma de traduzir esse aspecto, são compartilhadas, ao longo do filme, diferentes imagens de uma lida íntima e afetuosa entre os artistas, os moradores e a vizinhança das casas cujas fachadas foram pintadas.
O filme destaca também outra dimensão fundamental que toca à própria composição da equipe do projeto, em grande parte formada por jovens moradores do bairro. Ao longo de poucas semanas, adolescentes – e também crianças – tiveram contato com diversos fazeres da construção e do grafite, tais quais o reboco das casas, a montagem de andaimes, a pintura em si e os processos de finalização. Dentro do Mamu, muitos puderam, então, atuar como produtores e assistentes de pintura.
Abrindo caminhos
Paralelamente à formação direcionada à pintura das fachadas, logo entendemos, a partir do documentário, uma outra dimensão formativa do Mamu: tendo em vista a crescente cena de grafiteiros e grafiteiras dentro da comunidade, tais jovens foram convocados a escolher temas e convidados para duas oficinas a que teriam acesso, no próprio Alto Vera Cruz. Não por acaso, dessa vez os escolhidos foram nomes importantes da cena belo-horizontina: o coletivo PDF Crew, representado pelos artistas Edmun e Tot, e o grafiteiro, designer e ilustrador Wera CLN – e ambos toparam a empreitada.
Combinados a depoimentos dos artistas convidados e também de alguns estudantes, temos acesso a vibrantes imagens dessa série de encontros. Enquanto uma oficina direcionada à escrita e à caligrafia foi oferecida por Wera como atividade de iniciação ao grafite, aqueles que já tinham alguma experiência desfrutaram de quatro encontros com Edmun e Tot, ao longo dos quais tiveram acesso a práticas e estratégias voltadas à própria profissionalização como grafiteiro, considerando diferentes possibilidades de articulação com o mercado de trabalho.
Desenvolvido a partir de uma iniciativa aparentemente simples, mas cheia de complexidades, o mini documentário "Mamu – Morro Arte Mural" nos apresenta a expansão de um projeto cultural em direção aos campos do urbanismo, da sensibilização e da formação profissional de crianças e adolescentes. Em meio a um contexto onde nitidamente faltam políticas públicas de habitação, educação e cultura, afirma a efetiva força dos laços comunitários e do compartilhamento de saberes – e fazeres – para a transformação de espaços e trajetórias de vida.
Assista o vídeo